Heitor Ferraz Mello
Há uma epopeia em frangalhos na superfície aparente deste novo livro de Heitor Ferraz Mello. Um “épico/ em tamanho menor”, no qual a promessa de aventura já está mais do que desmentida e mesmo o naufrágio, motivo forte da poesia moderna, é reencenado sem nenhum heroísmo nas “águas turvas do presente”. Tudo parece existir para acabar, melancólico, no mural de uma padaria ou numa cama de hospital chamada Epic II.
No entanto, do fundo falso dos poemas, a voz lírica de Heitor se projeta, insistindo em captar alguma beleza na constelação efêmera das cinzas do cigarro, na imagem do velho João Gilberto “apoiado à dignidade de um violão”, na forma sempre única de cada jaca crescendo entre os galhos, na brincadeira do “caipora alucinado” partilhada com a mãe.
Uma “explosão de luz” insinua, para além do cotidiano emperrado, a permanência da vida sem desígnios, como o pavão que exibe “seu leque de olhos pintados e cores”. Por outro lado, consciente do caráter postiço dessa percepção, Heitor desfigura seu possível lirismo, fazendo os indícios da catástrofe contemporânea contaminarem a própria recordação, como na lembrança das flores de ferro dos portões, agora substituídas por vidros blindados “onde passarinhos azuis e doidos/ livremente se esborracham”. De sua posição desassombrada, o poeta também vê o lado opaco da cauda, a cloaca do pavão.
Um “corpo feito de cacos” se apresenta, incompleto, em cada poema. E é por essa sua desagregação, afinal, que o sujeito se perde entre os desbotados resíduos daquilo que antes se mostrava como uma contraditória experiência coletiva, encarnada nos choques da vida urbana tão bem formulados pelas tensões da poesia do século passado. Em seus livros mais recentes, Heitor elabora uma versão deliberadamente arrefecida dessa experiência, num quadrante histórico no qual o iminente colapso global, pressentido diariamente, é anunciado (de maneira cada vez mais banal) como um inevitável destino. Nivelado pelo acachapante presente, tudo aqui é composto de “nossa matéria descartável”, como na irônica sobreposição, por “mero acaso/ de palavras”, entre o corpo morto do herói troiano e o “destino de Heitor” na voz do GPS de um carro de aplicativo.
O empenho do poeta não se limita, porém, à enésima reverificação crítica do esgotamento dessa experiência em sua inflexão tardia. Neste momento de acelerada circulação de dados conduzida por algoritmos, no qual, tantas vezes, as obras artísticas são rapidamente consumidas sem se consolidarem como repertório compartilhado, Heitor mantém sua poética rente às coisas imediatas, as únicas verdadeiramente disponíveis, mas, de maneira talvez surpreendente, aposta ainda na fagulha de revelação que pode surgir da fruição estética. Assim, a tarefa de “medir o mundo” é assumida integralmente pelo poeta, que nos convida também a “vislumbrar o paraíso” em “cinco segundos apenas/ da alegria pura de Martha Argerich”, por meio de sua própria linguagem, “estropiada e viva”.
-- Renan Nuernberger
SOBRE O AUTOR
Heitor Ferraz Mello nasceu na França, em 1964. Mora no Brasil desde os dois anos de idade. Formou-se em jornalismo e é mestre em Literatura Brasileira pela USP, com uma dissertação sobre a poesia de Francisco Alvim. Trabalhou muitos anos como jornalista e crítico de literatura, tendo colaborado em diversos jornais e revistas brasileiras. É professor de jornalismo e língua portuguesa na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Em poesia, publicou, entre outros, Coisas Imediatas (1996-2004), Um a menos (2009), e Meu Semelhante (2016), todos publicados pela 7 Letras.
isbn: 978-85-93478-41-3
Ano: 2025
Formato: 14x21
Número de páginas: 76
Edições Jabuticaba é uma pequena editora voltada para a boa literatura. Floresce interessada em divulgar novos autores e a traduzir poetas e prosadores clássicos e contemporâneos que gostaríamos de ver em circulação no Brasil.