"UMA GARRAFA, ISTO É UM VIDRO CEGO. Esse é o título do primeiro poema do Tender buttons, de Gertrude Stein. Aí já começamos a ver alguma coisa. Ou melhor, a não ver. Porque quando se trata de Stein, não é de transparência – o vidro – que estamos falando. Mas de opacidade – cego. Não que o sentido seja totalmente eliminado. Nas descrições insólitas que ela faz de objetos, de alimentos ou de quartos, algo do referente permanece. Mas a linguagem em si é decomposta e recombinada. Algo como fazem os cubistas com suas formas, Picasso, Braque. Não à toa, amigos e referências de Stein. No caso dela, porém, estamos em território textual, não visual. Daí o estranhamento maior. Stein pega as palavras e as trata como objetos, como pecinhas. Criança que desmonta o brinquedo e remonta de um jeito inédito. “Esqueça a gramática e pense em batatas”, escreveu ela no livro How to Write, de 1931. Tem coisas que Stein não nos deixa esquecer. Primeiro, que é de linguagem que se trata, como foi dito. Não é outra coisa, não é o conteúdo, embora a ligação não deixe de existir. Segundo, que a linguagem é um deleite. Um deleite, um prazer, uma delícia. Como trava-línguas. Ou repetir uma frase até perder o sentido. “Uma tentação qualquer tentação é uma exclamação se há delitos e ossinhos.” Jogar, brincar. “Brame brame, manteiga. Deixe um grão e mostre, mostre. Eu espio.” Como diz o tradutor Arthur Lungov no posfácio, Stein faz tudo isso sem inventar palavras, sem os neologismos de Joyce ou os sons assemânticos dos dadaístas. É tudo na sintaxe. “As palavras que lemos em Tender buttons são relativamente simples e cotidianas; é a maneira pela qual estão dispostas que nos desconcerta”, escreve. E esse desconcerto é um estranhamento é um espanto é um deleite. A tradução de Lungov é feliz na recriação de um texto tão cheio de desafios, mantendo o frescor e a graça do original, dos trocadilhos ao aspecto sonoro, das rimas e aliterações às repetições e pontuação. Elementos que formam o ritmo tão peculiar da autora. Escritos entre 1912 e 1913, os botões de Stein continuam tão tenros na tradução quanto eram há 110 anos. Aos leitores e leitoras, cabe se entregar à experiência do texto e relaxar, desistindo de qualquer ideia de transparência, de apreensão absoluta de significado ou interpretação. “Cadências, cadências reais, cadências reais e uma cor quieta.” Aí começa o jogo, a cabra-cega. “É melhor que lagos inteiros lagos, é melhor que semear.”
Jeanne Callegari
SOBRE A AUTORA:
Gertrude Stein (1874 – 1946) nasceu em Allengheny, Pensilvânia, mas viveu em Paris pela maior parte de sua vida com sua esposa, Alice B. Toklas. Foi uma das maiores colecionadoras de arte do século XX, e foi figura central no desenvolvimento e na recepção do Cubismo, além de ter influenciado Dada e o Surrealismo. Escreveu poemas, romances, peças e ensaios. Seu livro de novelas Três vidas é considerado um marco na prosa curta modernista; suas peças monossilábicas, musicadas por Virgil Thomson, estão entre as experiências mais radicais da ópera moderna; seu antiromance The making of americans segue desafiando nossa sensibilidade narrativa; e seus poemas redefinem os limites do discurso poético de vanguarda. No Brasil, exerceu influência significativa nos Poetas Concretos e em demais artistas que saíram das neovanguardas dos anos 50, 60 e 70, como Caetano Veloso, Waly Salomão e Hélio Oiticica.
SOBRE O TRADUTOR:
Arthur Lungov (1996) é poeta e tradutor, autor do livro Corpos (Quelônio, 2019), que foi contemplado pelo 2° Edital de Publicação de Livros da Cidade de São Paulo; e da plaquete Anticanções (Sebastião Grifo, 2019). Seu livro re-Caramuru (inédito) recebeu menção honrosa no Projeto Nascente USP 2021. Teve obras escolhidas para a Iª Mostra Virtual de Poesia Visual, promovida pela Fundação Poiesis. Como tradutor, publicou a plaquete Dez botões (Galileu Edições, 2021), com traduções de Gertrude Stein. Teve poemas e resenhas publicadas em coletâneas, revistas e suplementos literários. Foi um dos fundadores da revista Lavoura.
isbn: 978-65-00-51055-3
Ano: 2022
Formato: 14x21
Número de páginas: 148
Bilíngue
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